A viagem apocalíptica e utópica pela linguagem em Jangada de pedra
Fátima Pereira
Apresentação
Saramago é sem dúvida, o escritor que melhor representa o pós-modernismo na literatura portuguesa. Sua importância não está apenas pelo conjunto de sua obra, mas na sua preocupação com a história e a identidade portuguesa; na busca na adoção de novos modos de narrar o ponto de vista do outro, o esquecido pela história; no diálogo com o leitor e na busca do rejuvenescimento do gênero romance.
Jangada de Pedra, escrito em 1986, é sem dúvida um romance pós-moderno Não só pela forma de narrar, peculiar de Saramago, mas por outros inúmeros traços que posteriormente serão tratados. Porém, antes de entrar no mérito do romance Jangada de pedra, é necessário compreender, ou melhor, procurar compreender o que é pós-modernismo e que esse fenômeno foi ou é sentido de maneiras diferentes por países do primeiro mundo e por países periféricos, como é o caso de Portugal, embora inserido na CCE. Em Saramago, a releitura do passado, memória coletiva, o idioma e a cultura portuguesa são elementos cruciais na busca de uma identidade nacional.
O fenômeno pós-moderno
O pós modernismo é um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte os próprios conceitos que desafia (…)
Linda Hutcheon
É preciso ter em mente que as artes, desde o fim do século 19, vinham sofrendo grandes alterações devido às mudanças da mentalidade burguesa e as novidades tecnológicas da época, das contradições dentro da própria modernidade: espaços idealizados de consumo; a difícil convivência entre a tradição e o novo; a sociedade capitalista – que primazia o indivíduo contrapondo a sociedade socialista. Os artistas acompanhavam as transformações pelas quais o mundo passava, fascinados, mas não ingênuos. Esse período foi marcado por correntes literárias e culturais que tentavam romper com os padrões estabelecidos, principalmente nas grandes metrópoles onde fervilhava. Ideais de vanguarda.
A partir da metade do século XX, as transformações culturais e sociais ocorridas indicavam a necessidade de novos conceitos e as teorias existentes já não eram capazes de responder às novas formas artísticas liberadas pelos processos sociais dos novos tempos, novos movimentos sociais e políticos, a mídia de massa, os movimentos da rua, a imagem e a informatização.
A grande polêmica está em conceituar a pós-modernidade, seu caráter de mistificação ou mesmo questionar sobre a existência ou não de um pós-modernismo. Trata-se da transformação da modernidade, de um fenômeno puramente cultural, ou ainda, de uma ruptura com a modernidade, um afastamento de suas premissas? A questão do pós-modernismo, segundo Jameson, é ao mesmo tempo, um problema estético e político.
O fenômeno do pós-modernismo em Portugal não se desenvolve nos mesmos moldes de outros países da Europa, como Inglaterra, França ou Alemanha. Apesar do passado de grandeza, do Império colonizador, atualmente Portugal é “um irmão” pobre dos desses países europeus. Portugal passou por um conturbado período político e econômico. O declínio da economia portuguesa nas ultimas décadas do século XX, principalmente depois da perda das colônias africanas. Mesmo hoje fazendo parte da Comunidade Comum Européia, tendo o Euro como moeda corrente, Portugal não passa de um país periférico da CCE, assim o sente seu povo, assim são vistos por outros europeus.
Saramago e a identidade nacional
Um tema muito discutido entre os intelectuais portugueses é o atraso de Portugal em relação à Europa. Saramago, alinhavando história, língua, memória e identidade na sua construção textual reinterpreta Portugal. Segundo Praxedes, a representação literária que Saramago realiza sobre a história portuguesa traz implícita uma responsabilidade ética atribuída `a geração atual de redimir o sofrimento das gerações futuras está inscrito no seu horizonte. (2000:51)
Na história portuguesa, realeza e a igreja católica influenciaram na construção uma de identidade nacional. Esta é outra questão que Saramago problematizará em toda a sua obra ficcional, já que a ficção é uma espécie de história especulativa (HUTCHEON: 1991:149).
Narrador e romancista se confundem na obra de Saramago. Usando a imaginação para interpretar a história portuguesa, dialoga com o leitor sobre a condição humana e as questões que afetam o mundo atual. Em Jangada de Pedra, Saramago problematiza o lugar de Portugal no contexto europeu e mundial.
Jangada de pedra
O romance inicia-se com o enigma sobre as consequências de um ato banal: uma mulher portuguesa, Joana Carda, risca o chão com uma vara de negrilho. A partir disto, cães da cidade francesa de Cérbere que nunca ladraram passam a fazê-lo, sem que se possa explicar o fato. A partir daí, outros fatos insólitos ocorrem. São apresentados outros quatros personagens em torno das quais desenrolarão esses acontecimentos. O que parece ser fato isolado, terá grande importância na trama. Na mesma época, Joaquim Sassa caminhava por uma praia do norte da Espanha coletando conchas, pinças de caranguejo, algas, que depois devolvia ao mar. Encontrou uma pedra pesada, larga como um disco, irregular (1992, p. 10), que atirou de volta ao mar, com muito esforço, achando que ela cairia logo adiante de seus pés. Mas a pedra caiu muito distante da praia, provocando uma grande ondulação. Em outra parte da Espanha, nesse mesmo instante, Pedro Orce saía da sua farmácia. em direção à rua e ao pôr os pés no chão, sentiu tremer a terra: foi um tremor extraordinário, mas ninguém mais pareceu perceber e nem mesmo registrados pelos sismógrafos. Na manhã do dia seguinte ao em que Joaquim Sassa atirou a pedra no mar e Pedro Orce sentiu o tremor de terra. Enquanto José Anaiço caminhava por uma planície, um bando de pássaros (estorninhos) voava sobre sua cabeça e começo a seguí-lo por onde andava. A última personagem que aparece é Maria Guavaira, a mulher que encontrou um pé-de-meia velho e azul no sótão da casa, e começou a desfiá-lo, porque não tinha outra coisa que fazer. Ao desfiar, percebeu que não diminuía de tamanho, embora o longo fio de lã azul não parasse de cair e um enorme e mudo cão aparece com um pedaço do fio na boca.
Esses acontecimentos coincidem com um fenômeno geológico: uma fenda nos Pirineus provoca a cisão entre Portugal e Espanha e os demais países europeus. A partir deste fato, a história dos povos ibéricos será recontada por Saramago e a questão da identidade desse povo será problematizada. A crise política e social que tal separação causa tem proporções imensuráveis. Os portugueses tentam fechar a fenda, mas em vão. Será apenas um gesto simbólico, ironiza o narrador. Acerca da separação do continente no texto de Saramago pode-se pensar que embora os portugueses façam parte da Europa, seus habitantes não têm certeza sobre sua identidade européia. O interessante é que não Portugal é separada como a Espanha, cuja situação no continente Europeu é similar, pois assim como Portugal, considerado um país hoje periférico sofrendo os mesmos dramas, sendo no passado igualmente um império colonizador, conquistas e reconquistas. de outros espaços, como em América e África. O início da jornada da “Jangada” constituída pelos dois povos pelo mar. Jornada esta com um início mítico, passando pelo portal de arco-íris em direção ao sol (símbolo máximo da esperança) relembrando a tradição mítica da fundação de Portugal e reaver a posição portuguesa no cenário mundial.
No processo da busca dos personagens Saramago reconstrói no romance a na busca das identidades nacionais. A problematização está não no desprendimento físico da Península, mas em outro tipo de afastamento de Portugal e Espanha em relação à Europa. Os efeitos dos atos incríveis e fantasiosos que desfilaram no capítulo inicial, seguindo as personagens apresentadas, acabam por se constituir num único efeito: as fendas responsáveis pelo desligamento da Península Ibérica (Portugal e Espanha) da Europa.
Este aspecto caótico e de ruptura que o narrador imprime, também literalmente, à narrativa pode ser interpretado como a busca de identidade do povo ibérico, e nesse caso se encaixaria perfeitamente a figura de Cérbero, o cão de três cabeças. Como uma ilha de pedra, a Península Ibérica se desprende do continente europeu, vagueia ao acaso pelo mar. Mas não é sugada como a Atlântida mítica.
neste ponto fatal a mão hesita, como irá ela escrever, de plausível maneira, as próximas palavras, essas que tudo sem remédio irão comprometer, tanto mais que muito difícil se vai tornando já destrinçar, se tal se pode em algum momento da vida, entre verdades e fantasias(1988, p. 34).
Neste romance, há um questionamento da verdade, pela própria construção textual. Embora haja referências cronológicas, elas não predominam, além de ser em grande parte imprecisas, o tempo da narrativa é psicológico. A ironia é outra marca da narrativa de Saramago.
Há uma variedade pessoas pronominais, pois os narradores são múltiplos e alternados, variando entre do singular e plural (nós, se, eu), o que anula um pouca a presença do narrador tradicional ao relatar, descrever e comentar os acontecimentos. As idéias são truncadas e as frases são cheias de solavancos, o que influi no ritmo da narrativa. O uso de períodos e parágrafos muito longos (às vezes a uma página ou mais) torna a leitura um pouco cansativa, mas esse recurso polifônico é importante nesse texto. Há uma total erradicação dos sinais de pontuação (usando predominantemente a vírgula e o ponto).
Em Jangada de Pedra, o importante não é apenas o que se passa na história, mas como a história é contada.
Bibliografia
GAZZOLA, Ana Lúcia Almeida * In Espaço e Imagem – Teorias do pós-moderno e outros ensaios. Org. e trad.. UFRJ, 2004.
HUTCHEON, Linda. Poética do Modernismo: História, teoria ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed. 1991.
LOPONDO, Lílian. (org.) Saramago segundo terceiros. São Paulo: Humanitas, 1998
PRAXEDES, W L de A. Elucidação pedagógica, história e identidade os romances de José Saramago. Tese de Doutorado. São Paulo, 2000.
SARAMAGO, José. A jangada de Pedra. São Paulo: Companhia das Letras.