O SISTEMA AXIOLÓGICO EM LOBATO

O SISTEMA AXIOLÓGICO EM LOBATO

Fátima Pereira

Quando surgiu “A menina do narizinho arrebitado”, a história da literatura infantil no Brasil tomou um novo rumo. Através dos moradores de “O Sítio do Picapau Amarelo”, Lobato brinca, ensina, critica e questiona a verdade. Se o  sitio de Dona Benta representa o Brasil, suas personagens representam os segmentos sociais, cada um  com suas características peculiares. Misturando imaginação com ironia e sabedoria, nada escapou a Lobato, nem temas tão polêmicos quanto à necessidade da modernização do país, à guerra ou o petróleo. Conhecer o autor será importante para entender o sistema axiológico (do Grego axios, que vale + lógos, tratado), ou seja, os valores morais e espirituais através das suas personagens.1


1. O Projeto criador de Monteiro Lobato

 “Um país se faz com homens e livros”
Monteiro Lobato

Filho de fazendeiro e neto de visconde, José Bento Marcondes Lobato nasceu a 18 de abril de 1882. Foi além de inventor e maior escritor da literatura infanto-juvenil brasileira, uma personalidade muito interessante da história recente do país e também muita polêmica. Antes de Lobato todos os livros eram impressos em Portugal; com ele inicia-se o movimento editorial brasileiro sendo reconhecido como um dos criadores da indústria editorial no Brasil, fundando a primeira editora brasileira, a “Monteiro Lobato e Cia”, em 1918.

Desde seu artigo “Paranóia ou Mistificação”, sobre a exposição de Anita Malfatti e a influência dos “ismos” nas obras da artista, em 1917, Lobato foi execrado pela crítica modernista,  porém  não se deixava seduzir pelas vanguardas européias, que segundo ele, era uma atitude estética forçada. O artigo gerou polêmica e irritação por parte dos modernistas. Mário de Andrade publicou um artigo no jornal” A Manhã”, no qual decretou a morte de Monteiro Lobato.

Toda obra literária de Monteiro Lobato tem uma forte conotação política. Monteiro Lobato vivenciou as transformações que o país passou, desde o fim do século XIX, a grande guerra, a revolução russa, os problemas do Brasil diante da necessidade de se modernizar. Como jornalista e como editor todo seu trabalho foi pautado por sua vocação político-libertária, mas não se filiou  oficialmente a partidos políticos ou organizações. Lobato  esteve presente nos debates sobre os problemas nacionais e nunca deixou de questionar os assuntos que afetavam o Brasil. Não se conforma com o desenraizamento cultural do país. Rejeita os modismos importados da Europa que nada têm a ver com a realidade brasileira. Monteiro Lobato sonhava com uma  nação próspera, desenvolvida e próspera.

Para Lobato, o atraso do país só seria superado pelo trabalho racional e aposta na modernização. Seus primeiros contos já falavam dos problemas sociais, econômicos e políticos, como o trabalho do menor, burocracia, a violência contra negros, imigrantes e mulheres, o desmando daqueles que estão no poder, do crescimento desordenado das cidades, da crise que passava o campo, além do crescimento desordenado das grandes cidades. Seu talento se impõe no cenário literário brasileiro.

Certo de que transformaria seu país em uma nação produtiva, eficiente e rica, Lobato abandona temporariamente a literatura e a atividade de editor para se dedicar às novas experiências no mundo da indústria e dos negócios. Ocupou o posto de adido cultural no consulado brasileiro, em Nova York. Conhece a cultura americana e fica impressionado pela riqueza e o desenvolvimento daquele país. Os relatórios que envia são verdadeiras plataformas desenvolvimentistas e nacionalistas. Mas enfrentou sérios problemas com seu livro “O Presidente Negro e o Choque de Raças”, em que narra a vitória de um candidato negro à Presidência dos EUA. Mesmo assim não perdeu o seu entusiasmo por aquele país. Também foi um defensor do cinema, de Walt Disney e da cultura americana.

Progressista inveterado, combativo e arrojado, Lobato criticava aqueles que eram contrários as coisas novas. Retornou, em 1931, disposto a lutar pela modernização do Brasil, para tornar-se um país rico. Suas iniciativas na busca do ferro e do petróleo esbarram na esfera política.           

Foi um dos maiores defensores de uma política que entregasse à iniciativa privada a extração do petróleo em solo brasileiro. Chegou a remeter uma carta ao presidente Getúlio Vargas na qual denunciava o interesse estrangeiro em negar a existência do “ouro negro” no Brasil. Esta luta pelo petróleo acabaria por deixá-lo pobre, doente e desgostoso. Como pioneiro na busca do petróleo no Brasil, e passou meses na prisão por este mesmo tema. Em 1937, já que ninguém lhe dava ouvidos – que existe petróleo- escreveu em O Poço do Visconde, em que um poço de petróleo fora instalado no Sítio de Dona Benta. Coincidência ou não, dois anos depois, o petróleo jorrava na Bahia, justamente no lugar onde  Visconde de Sabugosa previra.           
De 1927 a 1940, Lobato continua escrevendo para o público infantil. O sucesso foi imediato, pois antes Não existia um livro infantil brasileiro, geralmente os livros eram editados em Portugal, e na maioria eram feitos como se fosse para adultos pequenos e não para crianças. Produziu durante toda sua carreira literária 26 títulos destinados às crianças. Sua obra completa foi, em 1946, publicada pela Editora Brasiliense. Esta edição foi preparada e reformulada pelo próprio Monteiro Lobato, o qual, inclusive, reviu diversos de seus livros infantis. Sua facilidade em traduzir idéias complexas numa linguagem adequada às crianças gerou encomendas de perfil didático, como a Aritmética da Emília ou a Geografia de Dona Benta.

Para construir um universo em que se suspendem as barreiras de tempo e espaço, e a simplicidade rural do Sítio do Pica-pau Amarelo mistura os moradores do sítio com personagens de cinema, às visitas à Grécia antiga, aos vôos pela Via Láctea, dando ao leitor o prazer da leitura.
 


2. O sítio – espaço do real e do imaginário

Lobato criou um universo para que seus personagens vivessem. Numa casinha branca, lá no sítio do Picapau Amarelo, mora uma velha de mais de sessenta anos, é dona do sítio, um lugar muito bonito, com uma casa grande, muito antiga onde tudo é muito amplo e fresco. Ela mora aí com a Tia Nastácia, que cuida da cozinha e da limpeza da casa e sua neta Lúcia, que todo mundo conhece como Narizinho. Pedrinho, outro neto de Dona Benta, não troca o sítio por nenhum outro lugar do mundo para passar suas férias. Nesse sítio acontecem as coisas mais incríveis. Até petróleo encontraram. Furaram um poço com uma produção de 500 barris por dia. Com isso, de uma hora, para outra Dona Benta que era pobre virou rica.

O mundo onde os netos de dona Benta vivem é o mundo real, porém muito maior e mais fantasioso. No cenário do sítio fazia transcorrer o Brasil de seus sonhos: democrático, sem opressão, capaz de construir uma grande nação. No sítio não existe pai e mãe, geralmente aqueles que impõem regras e restringem as aventuras reais ou imaginárias das crianças, por sua função de educar. Incentivando a curiosidade e o espírito de aventuras. Misturando sonho e realidade, Lobato conquistava os pequenos fãs, que logo passavam a dividir com ele o universo em que tudo era possível – bastava usar um pouco de imaginação.

Personagens das fábulas, da mitologia, do folclore e da literatura infantil, bem como por nobres da estirpe de Don Quixote de La Mancha e outros famosos como gato Félix ou o Popeye, costumam visitar o Sítio. Pela imaginação de Emília ou das histórias contadas por Dona Benta, todo contato era possível.


3. O sistema axiológico de Lobato através de suas principais personagens:

Dona Benta

Dona Benta Encerrabodes de Oliveira, uma senhora com mais de sessenta anos, óculos de ouro na ponta do nariz é a mais feliz das vovós. Dona Benta tem uma cultura mais vasta, conhece todas as histórias, tem um nível de instrução, uma vastíssima biblioteca e adora contar histórias. É capaz de contar a história da humanidade, das invenções, de fadas… Conhece muito de geografia, e até física ensina para a turma do sítio, tudo de maneira simples, didática e interessante. Sabe até inglês, esteve lendo Man the Unknown [1].

Uma pessoa culta, conhecedora de outras culturas, capaz de ensinar sem a postura da escola tradicional, é sempre mencionada como a boa senhora, a boa velhinha. Dona Benta, enquanto leitora culta e conhecedora de outra língua, consegue acesso à obra estrangeira “escrevendo a uma livraria de São Paulo”. Assim, depois de ler o texto em inglês, Dona Benta o traduz não apenas para o português, mas para uma linguagem simplificada e oralizada, mais compreensível às personagens do Sítio e às crianças brasileiras. Apesar de ser responsável pelos netos, não lhes impõe tarefas ou punições. Instrui as crianças e deixa que elas encontrem seu próprio caminho. Dona Benta que aceita a aprende com a imaginação criadora das crianças, admitindo as novidades que vão modificando o mundo. Para Lobato, a educação e a cultura eram essenciais para o desenvolvimento do país.T

           Seria dona Benta o próprio Lobato, na sua função de ensinar as crianças brasileiras de uma maneira mais interessante e lúdica do que o ensino tradicional?

Tia Anastácia

Outra personagem adulta que vive o sítio é tia Nastácia. Negra de estimação que carregou Lúcia em pequena ganha as primeiras atenções. É a empregada da família branca. Seu domínio é a cozinha, embora costume se meter nos acontecimentos do sítio. Ela tem um nível de instrução muito baixo, ela é do tempo da escravidão, a própria forma como ela fala é de uma forma incorreta.

Tia Nastácia é um contraponto de Dona Benta, a proprietária. Ela, a pobre negra, a preta, desprivilegiada por uma cultura racista representa a presença da cultura e saber populares, fruto do conhecimento da vida pelo seu exercício real. Apesar de ser querida pelas crianças do sítio, é sempre motivo de riso, de chacota. Mesmo quando é ela quem conta as histórias sobre folclore, algo que uma mulher do povo, uma negra sem instrução é capaz de contar, não tem a mesma apreciação que Dona Benta tem.

Após cada história contada pela cozinheira, há comentário dos personagens. Seus ouvintes estão acostumados com a cultura escrita, Tia Nastácia transfere para o lugar de contadora de histórias a inferioridade sociocultural da posição (de doméstica) que ocupa no grupo e, além por contar histórias que vêm da tradição oral, não desempenha função de mediadora da cultura escrita, ficando sua posição subalterna. Emília é que mais faz críticas, que considera as histórias como bobagens de negra velha. Mas, se neste livro ele abraça idéias acerca da superioridade racial, em outros momentos resgata o elemento de origem africana e reconhece seu papel na cultura brasileira.

É preciso lembrar que o Sítio surge na década de 20, momento que o racismo é vigente e aceito, pois há pouco os negros deixaram de ser escravos, mas continuavam a servir aos senhores brancos. Tia Nastácia até chama Dona Benta de sinhá. Quando Lobato coloca uma negra cozinheira, retrata a sociedade da época que era racista: os negros ocupavam um lugar de inferioridade em relação aos outros.

Os netos

Lucia era órfã e vivia com a avó no sítio. A menina do nariz arrebitado, ou Narizinho, como todos dizem, tem sete anos, é morena como jambo, gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns bolinhos de polvilho bem gostosos. [2] Narizinho é uma menina muito inteligente e meiga. Encanta a todos por onde passa, desde a Grécia antiga até o Reino das Águas Claras.

 Educada e gentil, é capaz de se enfurecer e ficar vermelhinha de cólera, quando vê alguma maldade contra os mais fracos. No episódio da Pílula Falante, intervem a favor de um papagaio, com sopapos e pontapés contra os brutos.

Pedrinho é o outro neto de Don Benta. Criado na cidade costuma passar as feias no sítio. Forte, inteligente, amistoso e muito corajoso, não tem medo nem de onça. Junto com a prima Narizinho, planeja as grandes aventuras pelo mundo da imaginação.

Narizinho e Pedrinho têm comportamentos positivos para a sociedade, como interesse, curiosidade, praticamente sem defeitos, o que não é comum nas crianças reais. Se os netos de Dona Benta não têm defeitos, Emília os tem, e não são poucos.

Emília

Espevitada boneca de pano velho com recheio de macela, nasceu das mãos da tia Nastácia. Apesar de muito feia, é muito querida por Narizinho. Graças às pílulas falantes do doutor Caramujo, desanda a falar. De boneca de pano, graças a magia, acaba virando gente, com qualidades e principalmente, com muitos defeitos. Mas graças a esses “defeitos” Emília é verossímil. Sem papas na língua, Emília diz o que pensa. Alter-ego de Lobato, Emília assim como o autor, é capaz de dizer “verdades” doa a quem doer. Crítica e impiedosa, nada lhe escapa. Mas não se pode duvidar que ela seja uma líder nata.


Visconde de Sabugosa

Um sabugo de milho com perninhas e bracinhos espetados que ganhou vida e foi feito visconde para enganar a Emilia, no episodio do casamento dela co o Rabicó. Vive sendo escravizado por Emília, que não o respeita.

Muitos vêem na figura do Visconde um sábio, é Visconde é, além de sábio, valente, leal, corajoso, fiel, generoso: um verdadeiro nobre.

O Visconde  tem por característica querer saber tudo com rigor científico. Um sabugo que fala e acumula ciência, está sempre estudando e se tornar cada vez mais sábio. Cheio de ensinamentos e informações, às vezes para a salvação, como no caso da descoberta do petróleo, mas na maioria das vezes serve de gozação.

Na figura do visconde, Lobato critica o adulto pomposo, com ar professoral, que só acredita no que os livros trazem. Um verdadeiro intelectualóide como tantos que vemos na nossa sociedade.

4. Conclusão

A obra de Lobato se confunde com o próprio autor na medida em que suas personagens servem para dar o recado à sociedade. Homem crítico e idealista, de natureza inquieta, usou o seu talento para criar uma literatura infantil que servisse a seu propósito: levar educação e cultura, de uma maneira divertida e lúdica, mas com seriedade.  E em nenhum momento abandonou a crença no poder transformador da literatura (PASSIANI: 2002).           

É preciso entender “O Sítio do Picapau Amarelo” dentro daquele contexto político e social das primeiras décadas do século XX, embora suas personagens sejam universais e atemporais, como  a Emília, que se mete em tudo, que busca o sucesso a qualquer preço e  o intelectual pomposo que acha que sabe  tudo.

Bibliografia

]PASSANI, Enio. Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e formação do campo literário. Bauru: EDUSC, 2002.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil – Teoria, Análise, Didática. São Paulo: Moderna, 2000.

KUPSTAS, Maria. Monteiro Lobato. São Paulo: Ática: 1988. Série Ponto por Ponto.

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo: Brasiliense, 1993.

                  ______ O poço do Visconde. São Paulo: Brasiliense, 1994.

                  ______ Memórias da Emília. São Paulo: Brasiliense, 1994.

                  ______ Histórias de tia Nastácia. São Paulo: Brasiliense, 1993

[1] O poço do Visconde p. 7

[2] Reinações de Narizinho p. 7

[3 ]Histórias de Tia Nastácia

[4] Memórias da Emília. p. 48.



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