Inacreditável: quando a polícia não leva as vítimas a sério

Na última sexta-feira, 13, a minissérie Inacreditável (Unbelievable) chegou à Netflix, causando burburinho e expectativa pela temática, falar de estupro sempre é muito delicado. Logo no início a indicação “Baseada em fatos reais” chama a atenção. É forte, perturbadora e também uma história de “trauma, coragem e resiliência”, como indica a própria plataforma. O título é bem apropriado, já que é mesmo inacreditável que uma jovem estuprada em sua própria cama, tenha passado por tanto descaso e humilhação.

Com oito episódios, a produção acompanha a investigação de uma série de estupros ocorridos entre 2008 e 2011 nos EUA. Logo no primeiro, o espectador tem o incômodo papel de acompanhar uma jovem de apenas 18 anos, em Lynwood, Washington, que sofre um terrível ataque em seu próprio quarto, após ser acordada por um desconhecido mascarado portanto uma faca. Não bastasse toda a violência sofrida, ela continua a passar por situações terríveis, constrangedoras e levianas, tanto no hospital, quanto na polícia, repetindo tantas vezes o depoimento, relembrando vez por vez. Torna-se até cansativo acompanhar a narrativa. Mas tudo é proposital, a intenção é essa mesmo: se colocar no lugar da protagonista.


Ken Armstrong e T. Christian Miller

Em paralelo ao caso de Marie, no próximo episódio, a narrativa mostra um outro caso de estupro, quando entram em cenas duas detetives do estado do Colorado, que mesmo trabalhando em cidades diferentes, descobrem uma conexão entre seus casos e unem forças e recursos para identificar o estuprador. Embora as detetives nem imaginem que em outro lugar, uma jovem também passara por tudo aquilo, o espectador sabe, e essa tensão é elemento crucial para continuar vendo a minissérie até o último minuto.

A história real dessa moça ficou conhecida a partir uma série de reportagens veiculadas em 2015 nos sites Marshall Project e no ProPublica, uma organização sem fins lucrativos sediada em Nova York, que faz jornalismo investigativo independente e de interesse público. A matéria dos jornalistas T. Christian Miller e Ken Armstrong, An Unbelievable Story of Rape (Uma Inacreditável História de Estupro), vencedor do Prêmio Pulitzer deu origem ao livro Falsa Acusação Uma História Verdadeira (título em português, lançado em 2018 pela Editora Leya, com tradução de Daniela Belmiro).

A minissérie conta o que aconteceu com a jovem, identificada no artigo por seu nome do meio, Marie, em 2008 e como um erro de interpretação dos investigadores responsáveis pelo caso fez com que um estuprador em série continuasse a cometer seus crimes nos Estados Unidos.

Devido à falta de evidências e ao histórico problemático da jovem, criada em lares adotivos, somado às inconsistências em seus depoimentos, a investigação não avançou, levando os investigadores a duvidar se realmente houve o crime. Sem contar a dúvida razoável das pessoas que a conheciam, como uma das mães adotivas, para quem Marie ligou após ter sofrido o estupro. A investigação desastrosa realizada pela polícia de Lynwood desencadeou em uma mudança da linha de investigação.

Cansada do que estava acontecendo, e sem apoio das pessoas que ela julgava serem suas amigas, Marie decidiu dizer que não passava de uma mentira. Com isso o caso foi arquivado e a vítima passou a ser ré, sendo processada pelo estado por calúnia e ameaçada de ir para a prisão, enfrentando ainda a intimidação e ameaças por parte da comunidade.

Apenas anos depois, por conta de uma investigação conjunta entre distritos, a polícia descobriu a verdade. Nesse ponto algumas questões ficam claras: o papel das investigadoras no caso, o tratamento humanizador dado às vítimas, tão diferente daquele recebido por Marie. O fato de serem investigadoras mulheres traz um olhar diferenciado para as vítimas e as consequências de um crime tão brutal como o estupro?

Algumas cenas – por exemplo, o interrogatório de Marie pela polícia, o número de vezes que ela é solicitada a contar o ataque e seu exame de estupro no hospital – se aproximam do que aconteceu. Mas certos elementos biográficos das mulheres que foram atacadas fora de Denver foram mudados. Outro destaque é para os perfis das detetives da vida real, Stacy Galbraith e Edna Hendershot, muito bem construídos, e como o acaso aproximou essas duas mulheres fortes, determinadas e profissionais dedicadas para capturar o estuprador, contrapondo as atitudes dos detetives no caso em Lynwood .


Detetive Stacy Galbraith e sargento Edna Hendershot

Marie disse em uma entrevista que é grata pela série da Netflix, esperançosa de que suas lições ressoem. “Eu não quero que isso aconteça com alguém assim”, ela disse sobre ser falsamente acusada de mentir. Marie agora vive fora do estado de Washington. Ela é casada, tem dois filhos, segundo publicação recente do próprio ProPublica antes da estreia da minissérie.

Além da trama ser muito bem elaborada, o excelente roteiro de Susannah Grant, o elenco é de peso: Merritt Wever (detetive Karen Duvall)  e Tony Collette (detetive Grace Rasmussen) e Kaitlyn Dever, dando vida à jovem Marie. Essa realmente é uma história que merece ser conhecida, quem sabe traga uma mudança em como a sociedade, e principalmente a polícia, trata as mulheres vítimas de violência sexual.

Aqui no Brasil, na edição de 2018, pela primeira vez, o Atlas da Violência (Ipea/FBSP) apresentou uma análise alarmante sobre a violência sexual contra meninas e mulheres. Com base em estudos internacionais, o Atlas considera que apenas de 10% a 15% dos casos são reportados – o que elevaria para 300 mil a 500 mil o número de estupros cometidos no Brasil a cada ano. Um dos grandes problemas é que a vítima de medo de denunciar, por temer as consequências. Em grande parte dos casos, o estuprador é alguém próximo, ou até mesmo da família.

Fontes:
Netflix
ProPublica (artigos de 2015, 2019)
Editora Leya
Imagens: Divulgação



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